A visão da diplomacia americana sobre a gestão e o
exercício do poder dentro das Forças Armadas portuguesas é tudo menos
diplomática, pelo que se pode ler num relatório assinado pelo embaixador
Thomas Stephenson e que consta de um extenso telegrama já citado nas
páginas anteriores - enviado a 5 de março de 2009 para Washington com o
título "O que há de errado com o Ministério da Defesa português?"
O documento inclui um diagnóstico desassombrado sobre
uma estrutura "rígida" e incapaz de tomar decisões. "A imagem de
generais sentados sem fazerem nada não é uma mera alegoria".
"Os militares têm uma cultura de statu quo em
que as posições-chave são preenchidas por carreiristas que evitam entrar
em controvérsias, em vez de serem preenchidas com pensadores criativos,
promovidos pelo seu desempenho", escreve o embaixador americano.
"Espera o tempo suficiente, dizem-nos os oficiais, e
chegarás a coronel ou a general. Esta cultura fomenta um pensamento
adverso a correr riscos e um corpo de oficiais superiores para quem
adiar uma decisão é quase sempre a melhor decisão". Stephenson explica o
que quer dizer com um caso: "Pedimos ao comandante da academia militar
portuguesa se a banda da academia podia atuar numa receção da embaixada
americana. O general de duas estrelas respondeu que isso teria de ser
aprovado pelo chefe do Estado-Maior do Exército".
O problema não está, para o embaixador americano, na
falta de recursos humanos. "Como a maioria dos aliados da NATO, Portugal
encontra-se abaixo do padrão oficial que determina dois por cento do
PIB para o orçamento de defesa. Portugal está nos 1,3 por cento e gasta
esse dinheiro de forma imprudente. Portugal tem mais generais e
almirantes por soldado do que quase todas as outras forças armadas
modernas: 1 para cada 260 soldados. Em comparação, os Estados Unidos têm
um rácio de 1 para cada 871 soldados". Mais: existem ainda "170
generais adicionais que recebem o ordenado por inteiro enquanto se
mantêm inativos na reserva".
Qualquer um pode ser um obstáculo
"Um corolário da regra de que ninguém toma decisões de
comando", continua o embaixador, "é que qualquer pessoa pode
bloqueá-las. Ultrapassar estes obstáculos exigiria que um oficial viesse
a público desafiar a oposição interna, num ato raramente valorizado".
O cenário de bloqueio interno é agravado pela
segregação que existe entre os três ramos das forças armadas e o
Estado-Maior-General. O telegrama refere-se aos ramos (exército, marinha
e força aérea) como "feudos". "O chefe do Estado-Maior-General das
Forças Armadas não tem orçamento nem autoridade sobre os chefes dos
ramos, que regularmente ignoram as ordens dele".
"A necessidade de consenso na estrutura militar", diz
Stephenson, "inviabiliza muitas vezes os planos do Governo". E dá um
exemplo: "Nas reuniões da comissão bilateral luso-americana, elementos
do Ministério dos Negócios Estrangeiros e do Ministério da Defesa têm
implorado para que cooperemos em programas de formação militar na África
lusófona. Nós concordámos, mas só um em 16 projetos de cooperação
trilateral propostos por nós - a pedido do Governo português - teve a
participação de Portugal (um único sargento associado à formação do
exército americano sobre desminagem na Guiné-Bissau)".
Segundo o telegrama, há franjas no Ministério da Defesa
que têm um sentimento de posse em relação à África lusófona e não
querem o envolvimento de outros países em programas militares com as
ex-colónias.
Devemos fazer o trabalho interno dos portugueses
A par da radiografia negativa sobre as Forças Armadas, o
telegrama estabelece linhas orientadoras de como a diplomacia
norte-americana deve abordar o Ministério da Defesa - e também o Governo
português em geral. O princípio básico, para o embaixador, passa por
incentivar Lisboa sempre que possível. "Nunca deveríamos perder uma
oportunidade para encorajar o Governo português, porque o Governo
português nunca perderá uma oportunidade de procrastinar (adiar)".
Para isso, Stephenson acredita numa tática de
infiltração nas estruturas internas do poder: "Devemos envolvermo-nos
cedo e frequentemente e estarmos prontos para fazermos as consultas
internas por eles dentro do Ministério da Defesa".
Texto publicado na edição do Expresso de 26 de fevereiro de 2011